Talvez essa tenha sido a nossa grande ruína, o fato de querermos controlar mais do que devíamos. O fato de estarmos sempre travando uma grande guerra contra nós mesmos.
Naquele dia, eu travava minha grande guerra contra o impulso de ir até ele.
Eu estava falhando miseravelmente.
Era como se eu fosse aço e ele o ímã. Ou como se ele fosse ar e eu estivesse submersa em um oceano gigantesco por um tempo longo demais. Eu até poderia ser o anjo que era atraído pelo Sol. Mas o Sol queima, e minhas asas derretem e eu caio. Sou a própria imagem de Ícaro, caída, queimada e sem asas para poder fugir voando.
Eu não posso fugir.
No instante em que o encontro, no canto da sala, observando-me arrumar meus materiais, com a minha aprovação queimando no bolso da calça – aprovação essa que fica a um oceano de distância -, meu coração pesa e eu agarro a pequena estrela, presa à corrente de ouro que ele mesmo me dera há um ano atrás.
E então eu fujo dele. Pego minhas coisas de forma desajeitada e trombo com seu corpo quando passo pela porta. Ele ia dizer meu nome, e tudo ia desmoronar. Minhas certezas iam desmoronar. Eu iria desmoronar.
Eu não podia, nem deveria fugir, mas eu fujo. Isso porque há somente duas certezas que sempre guardei comigo, minha vida inteira: desistir dos meus sonhos não é uma opção; e não há nenhum sonho para sempre.
Essas duas certezas foram a única coisa que me manteve firme quando tudo o que eu imaginava ser para sempre foi parar debaixo da terra, dentro de um caixão bem lacrado, e tudo o que quis foi desistir. “Desistir dos seus sonhos não é uma opção, filha.” – foi o que ela me disse, por isso decidi que nada, nunca, impedir-me-ia de dar o fora dessa maldita cidade na primeira oportunidade que tivesse.
Bem, foi isso; essas duas certezas que me motivaram a continuar, mas foi ele que segurou a minha mão durante todo o caminho.
Ele era um problema sem tamanho e eu não conseguia ficar longe. Na primeira vez que o vi foi na porta da escola, onde, também, aconteceu nossa primeira conversa. Se é que aquilo pode ser considerada como uma conversa. Ele estava sentado, a cabeça nas mãos, os cotovelos apoiados no joelho. Sentei-me ao seu lado e esperei. Esperei ele dizer alguma coisa, talvez um simples “oi”. Ele se virou para mim, depois de um tempo, os olhos azuis intensos, uma ruga entre as sobrancelhas, e me mandou ficar longe. Mas tudo o que eu fiz, foi chegar mais perto. Acho que uma parte de mim é extremamente viciada em tentar consertar coisas quebradas, ou talvez eu seja atraída por essas coisas pelo simples fato de que eu mesmo precisava de conserto.
No dia seguinte, o encontrei parado na porta de uma casa que não era bem minha, mas era onde eu passava as noites desde que tudo se tornou tão complicado. Ele disse que não servia para uma pessoa como eu, que tinha problemas demais, e eles se tornariam meus problemas se ele não se afastasse a tempo. Eu respondi que não me importava, não porque eu não sabia como aquilo doeria quando acabasse, mas porque uma parte louca dentro de mim ansiava que eu e ele fôssemos uma coisa real.
Ele só me beijou dias depois quando ele já havia se infiltrado em cada pedacinho meu, e eu havia deixado.
Eu soube que o amava no dia em que me levou a um parque e passamos horas e horas rindo, como se o mundo fosse simples. Como se fosse apenas eu e ele, e mais ninguém. Naquele instante eu quis viver, e ele era o responsável.
Talvez, então, ele seja o meu sonho, mãe.
Mas o problema é que a voz dentro de mim sabe que nunca seria tão bom que nunca acabaria. O para sempre não existe, assim como ninguém é capaz de ficar por perto tempo o bastante para ser eterno.
Eu sei que o para sempre não existe, mãe, mas será que nem mesmo um meio termo poderia existir?
Provavelmente não.
Então, comecei a me despedir.
Isso faz parte da minha grande ruína, da minha grande guerra: ter que me despedir. Comecei me despedindo das memórias de uma vida que dali a uma semana não seria mais minha. Depois me despedi do céu, que de forma alguma seria tão claro e tão escuro ao mesmo tempo. Por fim, despedi-me das amarras pesadas que me mantinham ali. Não mais. Nunca mais.
Mas ainda não me despedi dele.
O nosso problema sempre foi nossas grandes guerras. Não um contra o outro, mas as guerras que mantínhamos enclausuradas dentro de nós, rasgando tudo o que havia aqui dentro, com a vontade inerente de explodir para fora. Nós dois éramos problemas. Enquanto eu precisava sair desse lugar o mais rápido o possível, ele nunca poderia se ver livre. Ele estava preso, cuidando de assuntos que não deveriam perturbá-lo. Eu estava louca, alucinada, para deixar tudo e viver longe de amarras e pesos pesados demais para um coração que custava bater.
Não podemos controlar tudo, disso nós sabíamos, mas não aceitávamos.
Eram guerras grandes demais para só duas pessoas.
Não há para sempre – foi o que repeti a mim mesma para deixar todas as memórias. – Isso acabaria de qualquer forma – foi no que me obriguei a acreditar.
Deixar ir sempre foi uma das minhas grandes guerras.
Passo exatamente duas horas encarando meu reflexo no espelho. Trancada dentro do banheiro feminino, as mãos tremendo, os olhos vermelhos. Eu sei que preciso me despedir, sei que não posso simplesmente dar as costas e ir embora, por mais que esse seja o jeito fácil. Então o sinal toca. O último sinal do dia. Os passos e os gritinhos dos alunos ecoam pelo corredor. Minutos correm como água pelas minhas mãos abertas. Acho que em algum momento entre o agora e o dali mais dez minutos, eu choro. Eu não deveria chorar. Não é o meu fim, não podia ser. Em uma semana, minha vida só iria começar de novo, como deve ser. Vou ter passado toda essa fase insuportável de pessoas indo embora ou me decepcionando. Em uma semana, eu vou ganhar mais uma chance, e é tudo o que eu sempre quis. Mas choro assim mesmo.
Quando finalmente saio do banheiro, os corredores estão desérticos. O pátio azul está vazio. O prédio é apenas uma sombra, enquanto o deixo para trás.
Assim que chego à porta, que é tanto uma entrada, quanto uma saída, ele está lá. Na mesma posição em que o encontrei no primeiro dia que tive coragem de falar com ele. E é como se o primeiro e último dia se misturassem na minha cabeça.
Então estamos de volta onde começamos, certo?
Ele ergue os olhos azuis para mim.
Ele se levanta.
Sou Ícaro e não posso evitar correr para os seus braços porque ele é o Sol, e eu sou fraca.
Mas não fraca o bastante para ficar.
Ficamos abraçados por tanto tempo e tão forte que até parece que o meu corpo é uma extensão do dele. Ele não diz nenhuma palavra enquanto estamos assim porque sabe que não seria justo. Ele sabe que eu quero ir embora, mas sabe que se pedir eu fico. Ele sabe que eu tenho medo de que isso que nós temos seja maior do que nós dois e nos devore por inteiro. Então ele fica quieto e só me abraça apertado.
Despedimo-nos na porta do colégio em que nos conhecemos, porque a vida agora seria fora e bem longe daquele portão de grades azuis.
Acho que, no final, a minha grande guerra era o medo tão grande do amor e das incertezas que acabei me ressentindo com qualquer amor que conseguisse. E fiquei sem nenhum.
Texto escrito pela aluna Luiza Aparecida Chaves Ranuzzi – 2ª série “B”.
Professora responsável: Profª Drª Priscila Marques Toneli