Em A Criança (p.21,22), Montessori disse:
“A pregação em favor da criança deve persistir na atitude de acusação contra o adulto: acusação sem remissão, sem exceção. // Eis que, a certa altura, a acusação transforma-se num centro de interesse fascinante, pois não denuncia erros involuntários, o que seria humilhante, indicando falha ou ineficácia. Denuncia erros inconscientes – e, por isso, se engrandece, conduz à autodescoberta. E todo engrandecimento verdadeiro decorre da descoberta, da utilização do desconhecido.” (grifo meu)
Nas ciências humanas contemporâneas, chamamos esses atos inconscientes que decorrem do desconhecimento de algum aspecto de nós mesmos de ideologia. A ideologia não é, como se costuma acreditar nos círculos sociais mais amplos, um véu que cega. Ela é, antes, um modo de ser determinado pelo meio social em que nos inserimos. Existem ideologias de esquerda e direita, sim. Mas também existem ideologias machistas e feministas, religiosas e ateias, e milhares de outras menos polarizadas do que essas, ou que ficam entre um e outro extremos.[1] Neste texto, defendemos algo que é já estudado em alguns espaços acadêmicos e defendido por alguns ativistas no mundo, mas pouco conhecido e ainda não associado com Montessori de forma produtiva: trata-se da ideologia adultista. Um modo de ser no mundo que privilegia o adulto em detrimento da criança e impõe a ela todas as formas de opressão.
No mundo da Natureza, tudo é feito para os menores entre nós: a água fica no chão, o abrigo fica no chão, a comida fica muito próxima do chão, em arbustos, raízes, hortaliças e pequenos animais. No mundo da natureza, uma criança de quatro ou cinco anos já encontra recursos de sobrevivência e pode beber água e comer alguma coisa sem a ajuda do adulto. Uma criança pequena pode dormir, no chão, num monte de folhas, sobre uma pedra quente, sem a ajuda do adulto.
Mas o mundo da civilização é cruel com a infância. O adulto tomou para si todos os privilégios: a água que fluía no chão para todos engarrafou-se e subiu a um metro de altura, ou escondeu-se por detrás de uma porta metálica pesada cujo pegador fica, esse também, alto demais. A comida, em sacos, pacotes, potes, gelada, congelada, alta, reservada, perigosa, venenosa, não pode mais ser comida livremente pela criança, e sua fome depende da boa vontade do adulto para ser satisfeita. O sono da criança pequena foi condicionado não só à vontade do adulto, mas à privação de liberdade da criança, que para dormir precisa ser encastelada e gradeada, isolada de tudo e de todos, sem a opção de mover-se, de se levantar, ou de ir dormir sozinha se assim deseja.
Mas a transformação do mundo físico em um mundo que privilegia o adulto – com suas mesas altas que deixam as pernas das crianças balançando e sua imensa quantidade de posses mais preciosas do que a Vida, que são constantemente protegidas por um transbordamento de “nãos” – esse mundo físico é só uma face do adultismo que oprime e destrói a formação da humanidade, hora a hora.
Outras formas de adultismo são o direito ao sim e ao não que o adulto arroga a si mesmo porque… ele é adulto. A frase “Enquanto eu pagar as contas, eu decido.” tão frágil por si mesma, mas tão forte pela tirania que a sustenta, engana-se ao sobrepor o poder do dinheiro ao poder da construção do humano, sobrepondo a produção de bens à produção de seres. Vale dizer: as crianças, depois de adultas, não devem nada aos pais simplesmente por terem sido criadas com todas as necessidades satisfeitas, material e emocionalmente. Isso é um dever do adulto para com a criança, e não uma benesse.
O adulto que bate na criança usa, sistematicamente, colocações cruéis, como “ele pediu”, “ele sabe que eu não gosto que ele faça isso” e “eu estava cansado”, como se cansaço, em algum mundo, pudesse justificar a vergonhosa violência contra a criança pequena.
O adulto decide tudo pela criança: sua roupa, sua comida, seu tempo, seu espaço,seu humor. Seu humor. O adulto diz: “Você vai chorar? Eu vou te dar motivos para chorar!”. O adulto diz: “Não chora! Não tem motivo pra você chorar!”. O adulto diz: “Mas você devia ficar feliz, vai, arruma essa cara!”. Frases que se fossem ditas entre adultos beirariam o tratamento desumano e degradante, configurando, no mínimo, assédio moral, são entre pais e filhos “opções de criação e formas de disciplinar e preparar para a vida”.
A opressão que sofremos, o cansaço que carregamos, os nossos fardos, não podem justificar nunca que queiramos dividi-los, na forma insidiosa da violência sutil, com nossos filhos, nossos alunos ou as crianças que nos circundam: elas não podem carregar o fardo do adulto, ele é pesado demais. Carregá-lo deforma o humano interior da criança, da mesma maneira que deformaria sua contraparte física carregar pesos verdadeiros por dias e noites de sua infância.
Há, felizmente, maneiras por meio das quais podemos combater o adultismo, que é profundamente presente em nossa sociedade, mundo afora. Aqui, listamos só cinco maneiras, mas há muitas mais, que traremos de tempos em tempos.
1. Prepare sua casa e seu local de trabalho para receber crianças.
Abaixe a água e a comida, tenha mesas baixas, um banquinho no banheiro, e faça as mudanças necessárias para que seu filho não more na sua casa, mas na casa dele também. Preocupe-se com o gosto estético dele na escolha da decoração, e com a facilidade de acesso dele ao guarda-roupa, aos objetos de cozinha e a todo o resto que pode ser acessado por crianças. Em seu local de trabalho, da mesma maneira que você faz mudanças para receber pessoas adultas com deficiências físicas, faça mudanças para receber crianças – em sua loja, escritório ou consultório podem aparecer crianças, mesmo que elas não sejam seu público-alvo, e saber recebê-las é humano.
2. Abaixe-se para falar com crianças.
É terrível falar com alguém que nos olha muito de cima. Para fazer a experiência, sente-se num banco baixinho e peça para um adulto íntimo seu fingir que te explica alguma coisa, sem abaixar. Agora faça a mesma coisa olho no olho. Como você se sente melhor? Agora, pense num adulto que é tirano e se impõe hierarquicamente (um chefe, por exemplo). É melhor olho no olho, não é? E é melhor falando baixo, e devagar, também, porque a criança fica mais calma, escuta melhor, e assimila mais completamente.
3. Coma numa altura confortável para a criança.
Não precisa ser sempre, é justo revezar. Mas comer no chão não é errado. Muitas culturas comem no chão. E comer no chão é confortável para a criança. Comer em cadeiras, bancos e mesas baixas também é. Se fazer as refeições assim é demais paa você, faça os lanches.
4. Nunca use como justificativa para qualquer coisa o fato de você ser adulto ou pai.
Isso é a mesma coisa que usar como justificativa o fato de se ser branco, homem, heterossexual ou rico. É oprimir sem motivo nenhum, só porque sim, e só porque “eu posso”. Se o que você está fazendo não tem uma justificativa verdadeira,pense. Não imponha tudo. Pense. Se é possível ser flexível, seja flexível. É assim que deveríamos ser com adultos: ceder onde é possível ceder, e não ceder onde não é possível ceder. Se fazemos isso, a criança entende que quando dizemos “dessa vez não dá”, dessa vez não dá. Ela não se frustra mais, ela se frustra menos, porque passa a viver em mundo mais justo.
5. Não oprima adolescentes, nem os subestime.
É mais fácil pensar na criança quando pensamos no adultismo, porque ver a inocência da criança diante da opressão que ela sofre é óbvio e claro. Ver a inocência do adolescente é tão difícil que, numa clara tentativa de violação de direitos humanos, busca-se até a diminuição da maioridade penal. Adolescentes podem muito, se bem educados e criados, e se tiverem à sua disposição um ambiente que permita e motive seu desenvolvimento integral. Conheça as necessidades de seus adolescentes, as vontades deles, as vozes deles, e dê espaço para que essas vozes sejam ouvidas, consideradas. Se você der ao adolescente mais do que você acha que ele merece, ele vai te mostrar que merece tudo o que recebeu. Seja educado, sincero, respeitoso, e trate o adolescente mais como adulto do que como criança.